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quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Ministério do Amor e a dissolução do coletivo



"O afeto é revolucionário"




No romance distópico 1984, de autoria de George Orwell, publicado em 1949, a história relata um cidadão comum, funcionário público, em um país fictício onde O Partido venceu a grande guerra que libertou a nação liderados pelo Grande Irmão (Big Brother). Essa sociedade, retratada na obra, é autoritária, controla a verdade, manipula a linguagem tornando-a cada vez mais simples e reduzida a poucas palavras, além de subjulgar os indivíduos à solidão para controlar as pessoas e manter o poder absoluto. 

Dentro dessa sociedade, onde o Grande Irmão assiste tudo e todos através de telas instaladas em todos os lugares, existem 4 ministérios que "cuidam" dos cidadãos: Ministérios do Amor, Ministério da Paz, Ministério da Verdade e Ministério da Abundância.

O Ministério do Amor é responsável por vigiar e punir os cidadãos dissidentes e buscam possíveis traidores, corrigindo-os por meio da tortura para que voltem seus ideais exclusivamente aos projetos do Partido. Ele persegue individuos que queiram fazer amigos, pessoas que mantenham diários e tenham "pensamentos livres" classificando toda ideia fora da cartilha do Partido com palavras curtas como crimi-ideia ou duplipensar, caçam quem quer que seja a falar de assuntos fora da esfera do Partido, ou ainda, que se interessem romanticamente por alguém e inclusive impões medidas disciplinares severas em casais que queiram fazer sexo que não seja para gerar filhos à nação. 

O nome do ministério é irônico, pois na história, ele é o mais cruel de todos. Ele tira a capacidade das pessoas de criarem laços, de formarem associações por interesse em comum e torna todos um inimigo em potencial, pois premia, com honrarias, quem denuncia traidores. 


A comunicação afetiva nos transforma individualmente e coletivamente.  
Quando falo em comunicação afetiva, não estou dizendo para falar tudo que vem na mente e conversar com todos, contar tudo sobre si mesmo e essas coisas superficiais. Que inclusive são perigosas
Comunicação vai além da fala objetiva, é um conjunto de ações que busca fortalecer e estabelecer laços emocionais e promover uma compreensão maior e uma real troca entre os envolvidos, e estes podem ser sua família, seus amigos, amigas e amigues, seus romances ou até mesmo um grupo de pessoas. 
Estar aberto a um diálogo onde você ouça mais atentamente, se interessar pelas pessoas, perguntar com um próposito de real compreensão, ter empatia e principalmente respeitar as emoções individuais e coletivas é crucial para manter ambientes saudáveis e manter a si mesmo saudável. 

A comunicação afetiva envolve a expressão sincera de emoções e nem todas precisam ser positivas.
Afeto não significa gostar, significa afetar e permitir-se ser afetado. Isso pode sim incluir demonstrações de empatia, gratidão e carinho com as pessoas mas também significa impor limites. Antes de gostar do outro é necessários gostar de si mesmo. 

E aqui entramos na questão do amor.
Aprendemos que amar é doar-se e nada mais. Aprendemos tarde, ou talvez nunca, que amar também inclui a si mesmo. Inclui respeitar-se. Só caminhamos à emancipação estabelecendo limites e não se esvaziando em prol de algo ou alguém. 
Fomos ensinados que o único amor é o romântico, o urgente, de filme.. que tudo tem que ser agora e tem que ser voraz, abandonar-se por completo e pra ontem!! Como se a vida fosse escapar dos dedos caso não acontecesse. 

Me cansei só em escrever.


Vi uma frase num muro que dizia 

"Te vejo livre, não domino;
Me vejo livre, não pertenço;
No fim das contas isso é amor."

Eu e meu companheiro conversamos muito sobre ela. Mandei a frase para ele há pelos menos uns 6 anos atrás, quando estávamos nos conhecendo mais intimamente, abordamos sobre nossas perpectivas em relação a estar com alguém e dividir a vida. 
Ter uma relação assim, onde o amor não sufoca, se respeita a individualidade e a liberdade de ser e estar me trouxe muitas coisas positivas sobre saúde mental, autocuidado, diálogo honesto e um profundo respeito pela autonomia. Busco levar o mesmo a ele e as pessoas ao meu redor. É nítido como essa nossa forma de se relacionar nos faz crescer juntos e sonhar juntos sobre um futuro mais harmonioso abrangendo também as pessoas que estão conosco na vida. 

A ideia de posse e domínio é rotineiramente questionada e combativa nas nossas vidas, entre nós e nos nossos ciclos de amizade também. 

Simone de Beauvoir, no livro O Segundo Sexo, expõe as lógicas de dominações presentes dentro desta noção de "amor" cujo o objetivo é a validação e que a sua identidade só pode existir vinculada à alguém. Isso afeta principalmente as mulheres tornando-as passíveis de subordinação e impedidas de experienciarem outras formas de amor e afeto. O livro é bem mais aprodundado do que isso que destaquei, mas essa parte tem muito a ver com que quero abordar aqui.

As relações tornando-se superficiais nos impedem de imaginar um futuro coletivamente positivo, onde homens e mulheres podem viver uma equidade social, individual e afetiva.
Nesta noção, que vou chamar aqui de amor-prisão, o entendimento de si mesmo e do outro pouco importa, a necessidade e a vontade do outro pouco importa, a relação se torna uma busca incessante por ser algo através de alguém. E na sociedade do capital e do cansaço, que vende a ideia de que se pode ter tudo e ao mesmo tempo não temos nada toda relação é de uso e desuso onde a interação só se baseia em interesse social e material e isso, coletivamente, nos divide. 

Voltando a instituição governamental fictícia de George Orwell, o Ministério do Amor combatia com mãos de ferro as relações interpessoais. 
Proibir o amor e as relações de afeto enfraquecia as pessoas, isolava-os e os limitaria a vidas solitárias sem experienciar os laços de lealdade. Toda fidelidade se direcionaria ao líder supremo e nada sobraria para os grupos sociais, nem mesmo para si. O controle emocional é uma das muitas maneiras de submissão, estratégicamente uma garantia de poder e mantem a passividade e a conformidade dos indivíduos dentro de uma sociedade cruel, limitante e totalitária. Suprimir relações afetivas com seus amigos, família, entre sexos e gêneros diferentes e outros diversos grupos é uma tática que cria um ambiente hostil, de medo, subserviente, que vai corroer toda a capacidade de resistência e promover desconfiança nos afastando cada vez mais de nossa emancipação coletiva. 




As ações do Ministério do Amor e sua existência são fictícias, qualquer coincidência com a realidade é mera semelhança.

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